O VÍRUS E (É) A DESIGUALDADE SOCIAL
Quadro: Curiosidade Reflexão Escrita
Mais um dia anormal de sexta-feira - diante da convivência com o inimigo invisível que se alastra com uma intensidade dolorosa, marcando, profundamente, um memória de escombros. Onde a identidade do atual governo se expande em políticas de morte e sofrimento. Já passa de 13 mil o número de óbitos em nosso país e uma perspectiva de futuro é falível. Externando a atuação do Estado - presidente - como agente do descaso, o abismo de desigualdades que traduz o contexto sócio-político se difunde expressivamente com a presença do vírus, onde os cenários constituídos sempre desfavorecem as pessoas mais pobres dentro de toda a carga interseccional que a concebe.
O VÍRUS E (É) A
DESIGUALDADE SOCIAL
Thiago Ingrassia Pereira
Sociólogo, Doutor e Pós-Doutor em Educação
Tutor do Grupo PET/Conexões de Saberes – Práxis/Licenciaturas (FNDE)
UFFS Campus Erechim
thiago.ingrassia@uffs.edu.br
Metade do mês de maio de 2020. Já nos aproximamos
de 300 mil pessoas mortas em decorrência do novo coronavírus – COVID/19 – em
termos globais. No Brasil, já passamos de 13 mil óbitos. Números que crescem,
vidas que diminuem. Para além desses números, temos pessoas, suas histórias,
gente que se importa e é importante para outras gentes. A dimensão humana de
uma pandemia é sempre trágica e perturbadora.
O novo vírus chega ao nosso país em um momento
complexo. Vivemos uma experiência administrativa em nível federal de
extrema-direita, as políticas públicas e os direitos sociais estão sob violento
ataque e o próprio problema da pandemia é contestado pelos segmentos sociais
alinhados ao negacionismo científico que tem no terraplanismo a sua mais
genuína expressão.
Vivemos o contexto histórico da explicitação
crescente do pensamento binário, polarizado e raso como um leito de rio em
momento de seca. É a preponderância presencial e virtual da doxa sobre a episteme, ou seja, da opinião (“eu acho”) sobre o conhecimento. Não
que antes do bolsonarismo não fosse assim, mas não era exatamente assim, pois o
que se apresenta na atualidade instaura novos padrões de sociabilidade em meio
à continuidade de traços constitutivos de nossa modernidade anômala, nos termos
do sociólogo José de Souza Martins.
Estamos diante da renovação de um dilema que
acompanha territórios submetidos à colonização violenta: o que é, afinal, ser
gente? Populações originais que não professavam determinado credo religioso e
não tinham a pele clara eram tratadas como simplesmente animais. Suas vidas não
importavam, não eram pessoas de “primeira classe”. É a necropolítica[1]
que, tanto antes como agora, gera as condições sociais que definem quem vive e
quem não vive.
O estatuto de gente é uma construção e o conjunto
de preconceitos e violências que temos em nossa sociedade resultam, em grande
medida, do sistema colonial e da escravidão. Temos uma soberania do Estado
assentada no monopólio do uso legítimo da força, como discutia Max Weber. A
modernidade ocidental define um certo tipo de gente, quem, de fato, é digno(a)
e, por isso mesmo, capaz de exercer plenamente aquilo que chamamos de
cidadania. A cidade e a indústria vão mudar a natureza e o próprio ser humano.
O resultado desse processo histórico moderno é a
pujança e a miséria convivendo lado a lado. A desigualdade social é resultado
direto do capitalismo e se apresenta não apenas do ponto de vista material, mas
também simbólico. Aprendemos a viver de uma determinada forma que, uma vez
irrefletida, se naturaliza. Por isso é tão natural que a classe trabalhadora
tenha que seguir trabalhando para sustentar o capital em meio à pandemia. Isso
explica alguns discursos dos(as) próprios(as) trabalhadores(as) em defesa do
capital, dos(as) patrões e patroas e a defesa do corte de SUS direitos em nome
de seus “empregos”. Aprendemos a ser assim.
Ao termos a capacidade de refletirmos sobre esses
processos sociais opacos, que não são facilmente observados, pois exigem um
grau de abstração teórica que somente é possível mediante formação própria,
incomodamos a quem não quer desnaturalizar nada, pois isso significa mexer em
seus privilégios. As ciências humanas, violentamente atacadas pelo
bolsonarismo, historicamente cumprem esse papel, por mais que muitos de seus
quadros acadêmicos estejam submetidos ao sistema e, inclusive, ajudem na
reprodução de sua lógica.
A pandemia atual não criou, mas explicitou o
nosso pior “vírus”: a desigualdade social. Vivemos no continente mais desigual
do mundo[2].
A América Latina apresenta aguda concentração de renda e riquezas e, por
consequência, gigantesca exploração do trabalho. No Brasil, esse cenário é
extremo, conforme os dados a seguir:
sob o critério-base do
Banco Mundial, de US$ 1,90 por pessoa/dia, havia cerca de 15 milhões de pobres
no país em 2017, 7,2% da população, um crescimento de 11% em relação a 2016
quando havia 13,3 milhões de pobres (6,5% da população). Esse é o terceiro ano
seguido em que essa taxa cresce, tendência iniciada em 2015. O Brasil é, sob
critérios do Banco Mundial, Upper-middle Income Economy, grupo de países onde a
linha da pobreza ponderada pelo tamanho da economia é calculada em US$ 5,5 por
pessoa/dia. Sob esse critério, o Brasil teria hoje mais de 22% de sua população
em situação de pobreza, 45 milhões de pessoas em vez de 13 milhões.[3]
Mais de 1/5 da população brasileira vive em
situação de pobreza. Mesmo assim, a riqueza segue sendo legitimada como
“merecimento”, afinal, quem é milionário “fez por onde”. Essa faceta
naturalizada da meritocracia é parte da dominação ideológica do capital e
penetra no imaginário social de forma decisiva. Quem é rico (geralmente homens)
é admirado e tido como exemplo a ser seguido.
Além desse segmento minoritário da elite
milionária – “ricos, podres de ricos” [4]
– que detém o poder por sua riqueza substantiva, temos segmentos de classe
média que se identificam com a elite e se constituem em sua “tropa de choque”,
atuando na sua defesa e na manutenção de seus privilégios, vendidos como
naturais ou fruto do merecimento.
Em virtude da alta concentração de renda,
segmentos de classe média se consideram ricos, assumindo uma postura de
naturalização de sua condição e da exploração que, via de regra, submetem à
classe trabalhadora (principalmente nos serviços domésticos). Mesmo não sendo
atingida, parte da classe média é contra a taxação das grandes fortunas. Isso
se explica num contexto de miséria e pobreza em larga escala e atualiza o
ditado popular: “em terra de cego, quem tem um olho é rei”.
A nossa “realeza” é quem sai às ruas em carreatas
pelo fim do necessário distanciamento social. É o mesmo segmento social que
estava indignado com a corrupção nos governos do lulopetismo e se cala a partir
de Temer e Bolsonaro. Em grande parte, é quem trouxe o vírus para o Brasil,
importando do exterior. Muitos e muitas fazem coro que é só uma “gripezinha” e
que deixando idosos(as) em casa tudo ficará bem. A economia, como sempre, não
pode parar.
De fato, nos marcos capitalistas em que vivemos,
não pode mesmo. E diante de um cenário de urgência coletiva, não cabe ao Estado
gerir essa crise? Se as pessoas não devem ir trabalhar para não colapsarmos o
sistema de saúde, não cabe ao poder público garantir renda durante esse
período? Se não for esse um dos seus papéis, para que serve mesmo o Estado?
Será que é só para proteger a propriedade privada?
Para os bancos nunca falta dinheiro público, mas
para sacar míseros R$ 600,00 vemos o povo pobre submetido à extrema burocracia
e constrangimentos de toda a ordem. O novo vírus vem reforçar nosso “racismo
primordial” [5]:
quem é, de fato, gente? Quem é digno(a) de se proteger da contaminação ou ter
um atendimento médico eficiente e humanizado?
O novo coronavírus gera uma situação que desafia
as ciências biológicas da mesma forma que as ciências sociais em sua
compreensão e enfrentamento, deixando muito evidente a importância da pesquisa
científica. Além dessas áreas e da saúde, mais uma vez a história nos mostra
como é importante termos escolas e universidades funcionando plena e
presencialmente. Mesmo que por esses espaços passem pessoas que as negam, assim
como pessoas que não conseguem enxergar outras pessoas. Seguimos como muito
trabalho pela frente e com muitos cuidados, inclusive por quem não nos cuida.
[1] Vide o
ensaio de Achille Mbembe: “Necropolítica: biopoder, soberania, estado de
exceção, política da morte”. São Paulo: n-1 edições, 2018.
[2] Vide
matéria publicada na BBC Brasil: “Por que a América Latina é a região mais
desigual do planeta”. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51406474>.
Acesso em: 13 mai 2020.
[3]
OXFAM BRASIL. País estagnado: um
retrato das desigualdades brasileiras. Relatório disponível em: <https://oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pais-estagnado/>.
Acesso em: 13 mai 2020.
[4] Vide o
livro “Ricos, podres de ricos” de Antonio David Cattani. Porto Alegre:
Marcavisual/Tomo Editorial, 2018.
[5] Noção
trabalhada pelo sociólogo Jessé Souza no livro “A guerra contra o Brasil”. Rio
de Janeiro: Estação Brasil, 2020.
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