NÃO-LUGAR DAS RELAÇÕES REAIS EM TEMPOS DE PAN(SIN)DEMIA

 

Luíza Zelinscki Lemos Pereira[1]


A pan(sin)demia, covid-19, transfigurou formas de relacionamento, relegando ao espaço do isolamento determinadas constâncias de interação social com o externo através de dispositivos eletrônicos. Partindo de uma associação entre o mundo real e o mundo interativo das telas, às quais nós estamos conectadas e conectados a maior parte do tempo, dentre as atividades que permitem um desenrolar de maneira virtual, o espaço escolar é elencado como foco de debate a partir de determinadas formas de relacionamento ocasionadas pelo ambiente das redes.

O processo de adaptação de funções presenciais para o modelo à distância desencadeou interlúdios específicos do processo de ensino-aprendizagem nítidos na observação das aulas de algumas turmas do Ensino Médio na disciplina de História. Associando o comportamento humano às reações de mudança brusca com relações ao habitus dialogado por Bourdieu (1992), novos habitus vão adquirindo regularidade diária.

Desta forma, aqui se propõe um diálogo entre as vertentes do Não-lugar proposto por Augé (1992) e o gerenciamento de uma biotecnologia de corpos e mentes, em uma estrita simbiose entre o humano e os dispositivos maquinários, estimulando o cercamento digital. Nesta relação de interdependência, o contato com as telas delimitado pelo confinamento, cria ambientes de artificialidade, produzindo uma experiência com o não existente físico. O mundo virtual se configura, assim, como a representação do real desde a identificação com a realidade conhecida, não como cópia, mas como transmissão de disparidades e semelhanças em uma única dimensão, conceituado por Foucault (1999), que por sua vez se vincula a possibilidades dimensionais outras.  

O perigo da transposição de relações palpáveis para assimilação integral em rede abre potencialidades para o diálogo acerca da habitação no Não-lugar. Espaço da individualidade e do anonimato, da criação paradoxal como um efeito boneca russa, que singulariza a conexão dos algoritmos permitindo a globalização, Hobsbawm (2007), o meio pelo qual há um vínculo que distorce tempo e espaço possibilitando a conectividade, mas que efetivamente é emoldurado pela capacidade de individualizar progressivamente.

            Considerando individualização como a solidão de corpos abastecidos de tamanha abundância de informações e notificações, observa-se o contínuo consumo do artificial e o apego a memórias das quais se permitia totalização da percepção dos cinco sentidos. Na perda da capacidade de manutenção de relações humanas complexas, táteis, há o desenvolvimento de superficialidades, acirramento de emoções e a caracterização do não-dizível, Pêcheux através de Gadet e Hak (1997), uma limitação da linguagem expressiva, do diálogo, transformados em simbologias do cansaço.

            É evidente que o impedimento do retorno de aulas presenciais causa estranhamento e não se pode deixar de evidenciar que o momento pan(sin)dêmico é amplificado e promovido por políticas de administração da morte, identificado, no caso brasileiro, como Necrobiopoder, Bento (2018). Diante deste cenário de horror e catástrofe, à luz do anúncio de Benjamin (1987), é imprescindível que a readaptação e re-habitação dos espaços antes ocupados seja um procedimento lento e gradual, enviesado por técnicas sanitárias.

            Contínuo à administração de uma personificação da vida possível através do sistema de redes de computadores, há o elemento conflitante da própria vida em si, que se elimina de forma orgânica nas relações com a realidade do mundo e a pessoalidade da presentificação de seres e até mesmo valores, já que a moral exigida e pré-existente da vida em sociedade, facilmente, se desmancha, se modifica e pode circular em diversos espaços no regime de anonimato. Disto decorre múltiplas formas possíveis de violência intelectual e simbólica.

            Para além das agressões, a perspectiva de invisibilização de pessoas também se torna evidente, já que é plural a interação ou a não-interação reprimidas por avatares que aparecem em aulas síncronas. Entre as/os discentes que se permitem interagir por meios audiovisuais se expressam as carências de uma solidez material e palpável que o cotidiano pré-pan(sin)dêmico proporcionava. É plausível elencar uma busca recorrente por sensações e sentidos confortáveis dos encontros presenciais.

            A transposição do ambiente físico para o Não-lugar da conectividade, do ambiente virtual, intensifica o estresse do confinamento, aqui, evidenciando o não-conhecimento específico sobre as vivências singulares, oportunidades, contexto cultural e econômico de cada aluna e aluno. Fato é que relacionadas as múltiplas especificidades, as telas, a dimensão do virtual, se tornam, também, possibilidades de fuga do panorama acessível do lar e, em contraposição, o meio possível para manutenção de resquícios de relações biológicas – alinhadamente, um duplo aprisionamento.

O virtual apodera, aprisiona, integra inúmeras possibilidades permeado por dispositivos integrados aos costumes contextuais. Diante do colapso da saúde pública e da consequente necessidade do isolamento social, o uso dos dispositivos eletrônicos se transformou em prisão permanente, aproximando o ciberespaço à patente do familiar. Aqui, insere-se também a problemática relacionada a questão sobre quem tem acesso aos aparatos que permitem o contato virtual e, da mesma forma acesso ao dinamismo do ensino síncrono, e quem tem acesso restrito, limitado ou, simplesmente, não tem os meios necessários para participação no processo.

Enaltecido pelo caso da problemática peça publicitária do ENEM, “Enem 2020 – O Brasil não pode parar”, apegado a um discurso liberal, destituído de abrangências e debates acerca das circunstâncias da Desigualdade, característica do aparto histórico do país, há a promoção constante do individualismo. O apego às redes e ao mundo possível de informações acessíveis na internet, empodera o discurso meritocrático aplicado pela propaganda de 2020. O Enem ocorreu mesmo em meio à pan(sin)demia que assola o Brasil e não cessa de representar em números o tamanho descaso com os corpos, com as vidas, entregando o desequilíbrio da detenção do saber/poder, Foucault (2014).

Ao mesmo tempo, a antinomia do acesso ao mundo virtual produz lacunas latentes no rumo da uniformização de cérebros, modos de ser, estar e sentir o mundo real ou não real, limitando ainda mais a apreensão dos capitais econômicos e culturais, Bourdieu (1992). Quanto maior o número de acessos e consumo de informações superficiais, instantâneas, circulação de notícias em redes sociais, é inversamente proporcional a construção de conhecimentos sólidos e críticos.

Na mesma linha de raciocino existe, também, o domínio do capital em todas as ambientações, inclusive no debate acerca da Educação Popular, já que acessar uma Educação Libertadora, Freire (2015), parte dos próprios limites do termo liberdade que, no sistema vigente, são sinônimos de aquisição. É possível destacar tal proposição a partir de Han (2018) e o conceito de psicopolítica. A centralidade dos dispositivos de captura, principalmente maquinários, são efeitos da individualização, do desmantelamento, da desmobilização e da não alteridade entre os seres, causando uma constante disputa entre práticas e saberes, uma corrida de cérebros.

A partir do lugar possível estruturado no não-lugar das redes interconectadas, a escola resiste e demonstra práticas cabíveis de adaptação. O problema trazido à tona pelo confinamento se traduz no aprisionamento, no sequestro de todos os âmbitos possíveis, incluindo o escolar, construindo uma constante interdependência de relações e pessoas com os dispositivos e com o aparato artificial. As escolas que antes se baseavam nas relações humanas para fazer o ensino acontecer, encabeçando também momentos de lazer, ceifados pelo virtual, acabam sendo prejudicadas enquanto um corpo, feito de docentes e discentes, que se apresentam ao seguimento das colocações sociais, de forma invasiva e invadida, do conforto da casa e na exibição deste mesmo conforto deste mesmo espaço íntimo na tela.

 



[1] Acadêmica do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) campus Erechim/RS e bolsista do Grupo Práxis – PET Conexões de Saberes/Licenciaturas. E-mail: zelinscki@outlook.com






Comentários

Postagens mais visitadas