EDUCAÇÃO POPULAR EM UM PLANETA FERIDO: PROVOCAÇÕES PARA O CHTHULUCENO

Guilherme José Schons[1]

 

“É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. É a essa frase – atribuída a Fredric Jameson e Slavoj Žižek – que Mark Fisher[2] recorre para compreender o filme Filhos da Esperança. Em seu livro Capitalist Realism: Is There No Alternative?, publicado meses após a crise de 2008, o filósofo inglês investiga um sentimento: o “realismo capitalista”. Segundo Fisher, o mérito dos neoliberais esteve na disseminação da crença de que o modo de produção capitalista é o único sistema político e econômico viável, sendo impossível imaginar caminhos subversivos a ele. Ora, estamos nos referindo à prevalência da convicção thatcheriana de que “there is no alternative” (TINA) – atmosfera experienciada profundamente pelo autor britânico, sobretudo, em seu trabalho como professor. Tendo em mente a ideia de que a escola é um campo fértil ao neoliberalismo – com, nos termos fisherianos, seu “stalinismo de mercado” e sua “antiprodução burocrática” – me parece interessante que as pessoas comprometidas com a educação popular pensem sobre (e almejem) o fim do capitalismo antes de que o mundo acabe.

Filhos da Esperança, do cineasta Alfonso Cuarón, retrata um planeta – que, lembrando Anna Tsing[3], está ferido e em ruínas – no qual campos de concentração e franquias de cafeterias coexistem em meio à esterilidade da espécie humana. Há anos não nasciam crianças e, sendo assim, o “fim do mundo” (categoria que está no centro das reflexões deste texto) seria marcado pelo lento cancelamento do futuro. Em uma sociedade autoritária, racista e xenófoba, apenas os ricos desfrutam do privilégio de esquecer o apocalipse e aproveitar os seus bens. Em outras palavras, quando nos tornamos estéreis de ideias radicais e anticapitalistas, em razão do avanço neoliberal, abre-se espaço ao fascismo. Aqui, encontramos o cerne da lógica de Fisher, ou seja, entendemos que o “realismo capitalista” é, na verdade, uma patologia da esquerda. Ouçamos Thatcher: a sua maior vitória foi a aceitação do TINA pelos seus adversários, com o “novo trabalhismo” do Tony Blair. Nesse sentido, se quisermos concordar com Mark Fisher e sustentarmos que não devemos falhar melhor, mas sim lutar para ganhar, deveremos nos afastar dos picolés de chuchu que forjam certa “impotência reflexiva”.

Outro ponto interessante que emerge a partir do exposto é a questão das temporalidades dessa catástrofe. A partir da destruição da Terra com base na pretensão de progresso infinito – que, como Benjamin[4] já ensinou, é uma tempestade – mediante a devastação de uma natureza vista como apartada do social e com recursos ilimitados, será importante nos dedicarmos ao exame dos “regimes de historicidade”, em acordo com a hipótese de François Hartog[5], que emergem nessa encruzilhada de experiências com o tempo. Se a modernidade, conforme Reinhart Koselleck[6], nasce da assimetria entre “espaço de experiência” e “horizonte de expectativas” e da projeção dos anseios em um futuro utópico (uma vez que a história não seria mais magistra vitae), o historiador francês, nos leva a perceber a ascensão do “presentismo”. Fruto da queda do Muro de Berlim, em 1989, e filho do neoliberalismo, ele seria marcado, no mesmo instante, pela aceleração do tempo e pelo fechamento do horizonte temporal. Somos confinados em um “presente que não passa”, como já escrevi com Feltrin de Souza[7] ao analisar episódio da série Black Mirror recheado de um “excesso de memória” típico do regime de historicidade presentista.

No future”. O slogan punk resume o presente do antropoceno/capitaloceno/plantationoceno/termoceno/thanatoceno que, para Bruno Latour[8], ganhou terreno graças à Constituição moderna e à polarização (absolutamente dicotômica) entre natureza e cultura. Para o defensor da antropologia simétrica, precisamos, ao contrário do que faz a espécie em extinção – os modernos –, assumir a existência dos híbridos. Ou seja, passar a enxergar os quase-objetos e as redes que eles constroem ao desafiarem a modernidade. Em todo caso, o que Latour quer é que vejamos que, em última instância, nós jamais fomos modernos. Se quisermos “aterrar”[9] e vencer o que chamo de “ataque ao bem viver, morte da alteridade e fim da história na atopia neoliberal”[10], precisaremos tanto de um novo paradigma epistêmico/político/econômico/poético como também de mobilizações rizomáticas que desafiem o fatalismo genocida e estimulem a luta pelo otimismo da vontade, sem o qual não conseguiremos parir o outro mundo possível do qual, de acordo com o Galeano[11], estamos grávides/as/os.

É dessa linha de raciocínio que surge o “ciborgue”. Um mito político, pleno de ironia, construído por Donna Haraway[12] para questionar, basicamente, três grandes distinções que conferem um arcabouço teórico ao pensamento ocidental e moderno, quais sejam, as polarizações assimétricas entre: 1) cultura e natureza; 2) humano e máquina; 3) humano e não-humano. Estamos falando, nesse caso, da urgência de que façamos parentes – e nos relacionemos simpoeticamente com as nossas “espécies companheiras”[13] – se pretendemos “continuar com o problema”[14]. Sob essa perspectiva, resistir ao “realismo capitalista” identificado por Mark Fisher envolve tanto a rejeição da inexorabilidade do fim do mundo (embora, de fato, sua imaginação seja mais fácil) como das soluções tecno-capitalísticas-fálicas que querem a colonização de Marte comandada pela burguesia delirante – no sentido adorniano[15], de substituto do sonho – ou pelos ricos filantropos do “comunismo liberal” aludido por Fisher. Aliás, os filmes Não olhe para cima (recém lançado) e o indecente Wall-E[16] comprovam que essas não são alternativas válidas, embora, em contraposição ao TINA, possibilidades coerentes existam.

Um desses caminhos é o chthuluceno proposto por Haraway. Estamos falando, agora, dos poderes e das forças tentaculares de toda a terra (com “t” minúsculo mesmo), incluindo mais-que-humanos, outros-que-não-humanos, desumanos e afins. Com isso, chegaríamos à chance de uma parcial e robusta recuperação e recomposição biológica-cultural-política-tecnológica, que incluiria o luto por perdas irreversíveis. “Faça parentes, não bebês” (kin e não kind, em inglês), brinca a filósofa. É uma oportunidade para que sejamos húmus (e não Homo), compostos (e não pós-humanos). Enfim: que sejamos simpoéticos e nos componhamos e decomponhamos. A saída não virá das tais “corporações”. Elas deveriam aprender com Ailton Krenak[17]: o amanhã não está à venda. Aliás, são justamente os krenak que, em acordo com Haraway, estão fazendo parentes ao considerarem o Rio Doce um avô sábio (o Watu) e enfrentarem o desastre causado pela mineração do “povo da mercadoria” – em consonância com o “aviso de incêndio”[18] de Davi Kopenawa e Bruce Albert[19].

Retomemos: para que alternativas sejam possíveis, teremos de considerar o papel da educação desde uma perspectiva popular e, portanto, me parece que estamos bastante distantes desse provocativo chthuluceno. Vivemos um contexto de ameaças a quaisquer perspectivas de ensino democráticas: BNCC, Novo Ensino Médio, Escola com mordaça, militarização e muitos outros horrores. De qualquer maneira, defendo aqui um aspecto nevrálgico. O cerne dessa devastação tem um mito correspondente: o Jesus Coach. Se quisermos parir novas possibilidades de vida e derrotar a malvadez neoliberal percebida por Paulo Freire[20], nós, educadores populares, teremos no pensamento tentacular e na defesa do decrescimento fortes aliados. Como Donna Haraway, eu também mereço criar um lema – em minha estreia na reflexão crítica escrita do PET Práxis: “Menos coaches, mais polvos”.



[1] Acadêmico do curso de História – Licenciatura na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim. Bolsista do Grupo Práxis – Programa de Educação Tutorial/Conexões de Saberes (PET/FNDE).

[2] FISHER, Mark. Capitalist Realism: Is There No Alternative?. Winchester: Zero Books, 2009.

[3] TSING, Anna. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.

[4] BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1996.

[5] HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

[6] KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

[7] SCHONS, Guilherme José; FELTRIN de SOUZA, Fábio. O eterno retorno da memória: a prótese do presente e o cancelamento do futuro em Black Mirror. In: JARDIM, Giovane Rodrigues; MATIELLO, Camila Milena (org.). Percursos interdisciplinares: somente a distância extrema seria a proximidade. Porto Alegre: Mundo Acadêmico, 2021. p. 198-210. Disponível em: https://www.casaletras.com/academico-livros. Acesso em: 29 dez. 2021.

[8] LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

[9] LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

[10] SCHONS, Guilherme José. “There is no alternative”: ataque ao bem viver, morte da alteridade e fim da história na atopia neoliberal. Temporalidades: Revista de História, Belo Horizonte, v. 12, n. 3, p. 436-459, set. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/25479. Acesso em: 29 dez. 2021.

[11] EDUARDO Galeano – Este mundo está grávido de outro. Barcelona:  acampadaBCN.  (11 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mdY64TdriJk&feature=emb_logo. Acesso em: 03 jul. 2020.

[12] HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. p. 33-118.

[13] HARAWAY, Donna. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

[14] HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.

[15] ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011, p. 43.

[16] Sobre Wall-E, ler Capitalist Realism, de Fisher, em especial os capítulos, em tradução livre, “E se você convocasse um protesto e todo mundo aparecesse?” e “O capitalismo e o Real”.

[17] KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

[18] LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de História”. São Paulo: Boitempo, 2005.

[19] KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[20] FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.




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